Os 50 anos de ‘Hatfield and the North’, disco que captou a essência progressiva da Cena de Canterbury
- Caio Alves
- 22 de mai. de 2024
- 10 min de leitura
Supergrupo produziu álbum homônimo de sonoridade praticamente ininterrupta, unindo prog rock, jazz, psicodelia e sátira
Há pouco mais de 50 anos, no final de fevereiro de 1974, a banda inglesa Hatfield and the North estreou na música com um álbum de estúdio homônimo, lançado pela gravadora Virgin Records, fundindo elementos do rock progressivo com o jazz, psicodelia e experimental, além de trazer letras que, às vezes, satirizam as próprias composições por meio da metalinguagem. O trabalho reuniu o supergrupo formado por membros já conhecidos no cenário do prog rock, sobretudo da nomeada Cena de Canterbury, contando com o vocalista e baixista Richard Sinclair (que fez parte do Caravan e do Wilde Flowers), o pianista e organista Dave Stewart (integrou o Uriel e o Egg), o guitarrista Phil Miller (colaborou com o Gong) e o baterista Pip Pyle (que foi membro do Matching Mole). Além dos quatro integrantes principais, que compuseram as faixas, Hatfield and the North teve as gravações de Geoff Leigh, no saxofone e na flauta, Didier Malherbe, também no sax tenor, Jeremy Baines, no pixiephone e na flauta, e os vocais de Amanda Parsons, Ann Rosenthal, Barbara Gaskin, Cyrille Ayers, Robert Wyatt e Sam Ellidge.
Cinco décadas após o lançamento, o álbum ainda chama a atenção dos ouvintes de rock progressivo, jazz fusion e psicodélico, com músicas que exalam o virtuosismo e a criatividade dos artistas, os quais escapam por melodias originais, improvisadas e incomuns, algo característico do som que ganhou forças em Canterbury, na região sudeste da Inglaterra, no final dos anos 1960 e início de 70. Embora muitos músicos os quais fizeram parte de grupos que levam o “selo” da Cena de Canterbury não tenham nascido, propriamente, nessa localidade, tal nome começou a circular pela mídia com o intuito de definir a sonoridade única que estava sendo feita por lá. Dessa maneira, bandas como o Soft Machine, Caravan, Matching Mole, Gong, National Health e a própria Hatfield and the North sustentaram esse subgênero musical associado ao rock progressivo.
Assim como as melodias, em certos momentos, obscuras e misteriosas, a arte da capa do álbum, montada pelo fotógrafo britânico Laurie Lewis, traz uma fotografia panorâmica de Reykjavík, capital da Islândia, com a parte direita do céu na imagem sendo contrastada pela transparência da pintura “Os Malditos” (Die Verdammten), do italiano Luca Signorelli (1441 – 1523), localizada na Catedral de Orvieto, Itália. Tal arte é composta por uma coloração cinza e rosa, remontando o estilo da capa de In the Land of Grey and Pink, álbum essencial da Cena de Canterbury lançado em 1971 pelo Caravan.
Formação e lançamentos
Desde a formação até a composição das canções, o Hatfield and the North funciona como uma fusão das sonoridades de outros grupos da Cena de Canterbury. O projeto iniciou com o Delivery, banda de blues e rock progressivo originalmente chamada de Bruno’s Blues Band, constituída no final dos anos 1960 por Phil Miller (guitarra), Steve Miller (piano), Jack Monck (baixo), Lol Coxhill (saxofone) e Pip Pyle (bateria). Com a dissolução de tal grupo, formaram-se outras bandas a partir de alguns desses membros, a exemplo do Gong, Matching Mole e Hatfield and the North, que nasceu em 1972 por meio de Phil Miller e Pip Pyle, que tinham interesse em fazer pequenas excursões com o novo projeto. Dessa maneira, os músicos se juntaram a Dave Sinclair (teclado) e Richard Sinclair (baixo), primos cofundadores do Caravan, mas aquele optou por sair da banda, no início de 1973, sendo mais tarde substituído por Dave Stewart (teclado), que havia saído recentemente do Egg.
Tendo encontrado o quarteto definitivo, o Hatfield and the North assinou com a gravadora Virgin Records para registrar seu primeiro álbum de estúdio. O que, inicialmente, trataria apenas de excursões modestas, transformou-se na criação e gravação de um álbum inteiramente composto por músicas autorais, projetando um trabalho promissor, visto que estava sendo registrado por um supergrupo. Assim, a banda gravou o disco entre outubro de 1973 e janeiro de 74, no Manor Studios, sob a produção do engenheiro de som Tom Newman e do próprio Hatfield and the North, que teve o nome inspirado em uma placa da estrada principal A1 a qual leva para o norte de Londres. A sinalização dos anos 1970 trazia a escrita “A1 Hatfield & the North”, substituída futuramente por “The NORTH, Hatfield”.
O conjunto lançaria apenas mais um álbum de estúdio, o The Rotters' Club, de 1975, antes da dissolução ocorrida nesse mesmo ano. Coletâneas e discos com gravações ao vivo seriam lançados nas décadas subsequentes, como o Afters (1980), compilação com músicas dos dois álbuns de estúdio e seus respectivos singles, Live 1990 (1993), que marcou a reunião do grupo para um show ao vivo junto da tecladista Sophia Domancich, Hatwise Choice (2005), mistura de gravações ao vivo, performances para rádio e a demo de K Licks, e Hattitude (2006), também trazendo gravações ao vivo dos anos 1970. Longe do sucesso alcançado por colegas do subgênero, como o Yes, Genesis e Pink Floyd, o grupo, às escondidas, angariou fãs para suas músicas, que têm sido relembradas nos últimos anos.
Faixa-a-faixa: lado A
O lado A do LP Hatfield and the North é aberto por The Stubbs Effect, instrumental de 22 segundos creditado ao baterista Pyle, embora a gravação conte apenas com a performance do pianista Stewart, que cria uma introdução de sonoridade espacial crescente, por meio do Fender Rhodes electric piano e do Hohner Pianet, dando início à jornada progressiva e psicodélica do álbum. Remontando os instantes finais de Karn Evil 9 3rd Impression, lançada em 1973 pelo trio britânico Emerson, Lake & Palmer, de maneira incessante, a faixa logo muda para Big Jobs (Poo Poo Extract), composta por Sinclair (voz e baixo) e Pyle. Construindo uma metalinguagem, isto é, uma letra que fala da própria composição, Sinclair canta, em tom de brincadeira e ironia: “Aqui vai uma música para começar o início/ Algumas notas que são arbitrárias/ Nós tentamos o nosso melhor para fazê-la soar agradável/ E espero que nossa música te excite para o nosso último LP/ Deve ser uma risada certamente”.
Going Up to People and Tinkling, a faixa seguinte permanece na sonoridade jazzística, com a melodia carregada pelas frases e solos de guitarra de Miller, as frases e acordes de piano de Stewart (compositor de tal música), o baixo improvisado de Sinclair e a bateria de mestre gravada por Pyle. O instrumental pode representar a imagem de um dia movimentando de uma cidade grande. Mais à frente, sem perceber, o ouvinte é levado à emocionante harmonia vocal performada por Sinclair e Robert Wyatt em Calyx, creditada a Miller. Os vocais edificam uma dança calma e amorosa, acompanhados da marcação serena do prato da bateria e do baixo, juntamente do capricho dos acordes de guitarra. No meio da música, surge um efeito de teclado que soa retrogrado ao lado da melodia dos vocais, conduzindo a composição ao ápice do fim.
O som da batida no prato da bateria se funde ao efeito de teclado, na transição para Son of 'There's No Place Like Homerton', composição subsequente de Stewart, que comanda a parte introdutória com um riff de piano. Segundos à frente, a bateria se põe em um ritmo mais rápido, acompanhada das linhas de baixo, do órgão Hammond, saxofone, da flauta, e de outros efeitos de piano elétrico, na construção de uma das músicas mais progressivas do disco – com seus mais de 10 minutos de duração –, variando entre melodias calmas e ligeiras. Na exata metade da faixa, após alguns sons de voz com efeito, entram em cena os vocais de Amanda Parsons, Barbara Gaskin e Ann Rosenthal, o trio feminino apelidado de “Northettes”. O coral angelical canta sobre as visões psicodélicas de alguém que sonha, entre outras coisas, com um barco o qual rema pelas estrelas como um cavalo marinho, “Cantando músicas bobas em tempos bobos/ Tons, suspiros, gemidos, melodias”, em uma manhã fria de inverno, apresentando o que pode ser considerado um dos pontos altos do álbum. Após a pausa trazida pela delicada sonoridade do pixiephone, executado por Jeremy Baines, a bateria faz a canção retornar à melodia do início, trazendo um breve peso, que retorna ao final com o arranjo frenético comandado pelos vocais das Northettes e do arranjo de metais.
O baixo puxa a próxima música, Aigrette, escrita por Miller, que constrói a melodia com o violão e a base com a guitarra, acompanhado dos vocalizes e do baixo de Sinclair e da bateria de Pyle. Na parte final desse instrumental, destaca-se o baixo, que realiza algumas linhas que funcionam quase como um solo, fazendo um contraponto ao arranjo melódico criado pelo violão e vocal, culminando na transição ininterrupta para Rifferama, composta por Sinclair. Tal faixa seguinte apresenta um arranjo frenético construído a partir de riffs e solos de guitarra e teclado, da cozinha definidora do ritmo e outros elementos psicodélicos criados com módulo de som, efeitos sonoros e outros instrumentos. No que diz respeito a essa última característica, é possível escutar pessoas dando risadas, arrotos e gritos, o que é complementado pelo arranjo vasto criado pelos músicos mais ao fim da composição. Como em uma sátira consigo mesma, a música termina em uma grande risada.
Lado B
“And now Hatfield and the North”, é o que entoa o início de Fol De Rol, parceria de Sinclair e Wyatt que abre o lado B do álbum. A auto apresentação da banda é seguida por sons psicodélicos e misteriosos, com sussurros e assobios; mais à frente, a harmonia principal entra com o quarteto instrumental e os vocais de Sinclair e Cyrille Ayers, que soam como crianças que estão aprendendo a falar; quando os vocais param, a guitarra faz a base para o solo de baixo, acompanhados pela bateria e por “ares” psicodélicos trazidos pelo teclado. A faixa termina com alguém atendendo um telefone que toca; ao atender, os vocais retornam emulando o som abafado da chamada.
O desligar do telefone faz Shaving Is Boring (Pyle) ser introduzida, seguindo com um groove de baixo e o uso de minimoog, elementos até então inéditos no disco; o arranjo inicial também é sustentado pela guitarra e bateria durante o primeiro minuto e meio. Após esses segundos, a composição entra em uma seção de riff contínuo, que é complementado por frases psicodélicas feitas na guitarra e teclado. Nesse meio tempo, sons de percussão e efeitos espaciais vêm à tona, construindo o momento mais psicodélico do disco; no alto dos quase seis minutos, o ouvinte é surpreendido com aberturas e fechamentos de “portais musicais”; um indivíduo corre de um lado para o outro (em som stereo) para abrir e fechar essas portas, sendo possível relembrar trechos de três faixas anteriores do disco a cada abertura. Por fim, o sujeito abre o último portal e “cai” na sonoridade frenética que dá continuidade à presente música do álbum; o destaque nessa parte fica com o arranjo dos teclados e os solos de guitarra; em determinado momento, a bateria toca em ritmo de bossa nova, enquanto os demais instrumentos encaminham o final da faixa por meio de solos em conjunto.
A calmaria é herdada do final da última composição para iniciar Licks For The Ladies, canção subsequente escrita por Sinclair e Pyle. O baixista canta com uma voz calma e até falha sutilmente, em certos momentos, passando um tom proposital de tristeza e saudade. A banda novamente utiliza a metalinguagem para compor a letra, que hora fala do sentimento de tédio após uma relação sexual, hora do processo de composição de uma música e da escolha de instrumentos que irão construi-la, a exemplo desses versos: “Caso você ache que é um desperdício/ No final, escolhendo notas para ver se elas fazem amigos/ Um D# menor achatado na 5ª vai para C/ Crotchets pontilhados geralmente divididos por três”; “Agora não sabemos exatamente o que queremos dizer/ Ainda assim, tínhamos a essência/ Até que os acordes mudaram, inesperadamente”. Neste último, inclusive, a letra é coerente com a música, visto que ela, de fato, tem a harmonia alterada quando Sinclair canta tais versos.
Bossa Nochance, música seguinte de Sinclair, traz o ritmo jazzístico e dissonante da bossa nova, por meio do arranjo suave dos quatro instrumentos. Em seus 40 segundos de duração, o baixista canta a respeito de desejos em ter uma vida isenta de preocupações e em prol do prazer, mas que, por se encontrar muito resfriado, é impedido de correr atrás disso – Sinclair funga com o nariz na gravação, simulando o congestionamento. Tal lírica pode ser uma crítica irônica às pessoas que desistem fácil ou sempre colocam obstáculos pequenos na frente de seus objetivos.
De maneira imperceptível, o disco troca para Big Jobs No. 2 (By Poo and the Wee Wees), parceria de Sinclair e Pyle, permanecendo, porém, na sonoridade do jazz. A canção reprisa a segunda faixa do álbum, trazendo a mesma lógica musical daquela, entretanto com um ritmo mais rápido e alterações na letra. Através do “estilo Hatfield”, Sinclair agradece o ouvinte – as “mães que fizeram xicaras de chá” – por ter escutado o álbum até agora, oferecendo um tom de despedida com os versos “Temos que sair daqui esta noite/ Espero que soe bem/ Mas estamos nos esforçando para que soe agradável/ E espero que a música te excite/ Enquanto você está bebendo seu chá/ Dê uma risada certamente”. A música é encerrada por um solo de teclado e vocalizes repletos de efeito.
Remontando uma canção de ninar, Lobster in Cleavage Probe, de Stewart, inicia com a suavidade do teclado, em seguida trazendo de volta as vozes das Northettes, que performam um entrelaço harmônico épico e delicado, entrando no arranjo uma após a outra, acompanhadas das flautas gravadas por Geoff Leigh e Jeremy Baines. Poética, a letra é sobre a morte e suas consequências: “E no final, todos os nossos problemas desaparecem, derretem/ (Jogue, como um sino de ouro no vento da noite)/ E no final, todo o tempo que passamos, vamos salvar/ (E no final, depois de tudo dito e feito)/ O tempo é só poeira, quando terminar, voaremos/ Como uma bandeja de chá no céu”. Dessa maneira, a morte é trazida aos poucos com a crescente dos vocais, que finalizam a primeira seção da canção para a entrada do riff de baixo, que segue acompanhado pelo teclado, guitarra e bateria. Algumas intervenções são exercidas pelo órgão Hammond e Hohner Pianet, terminando em uma melodia que está prestes a anunciar o fim inevitável.
A passagem para a eternidade não é fácil, assim demonstra Gigantic Land Crabs in Earth Takeover Bid, de Stewart, por meio do riff pesado, misterioso e amedrontador criado pelo baixo, guitarra e teclados, com o reforço raivoso da bateria. Antes da paz eterna, a alma tem de lutar contra os caranguejos terrestres gigantescos, que guardam o portal para o lado oculto da Terra. Dessa forma, por hora, a alma consegue vencer as criaturas, representadas pelos solos distorcidos de guitarra, e segue viagem rumo ao descanso. O clima ameno surge com o arranjo de piano e o cessar do solo de guitarra; ao passo que a alma vai chegando perto do fim da jornada, o ritmo da música aumenta a velocidade, criando um riff contínuo que soa como a correria em direção ao objetivo. Próximo do fim, entretanto, as criaturas gigantescas – as frases de guitarra – voltam a ameaçar e perseguir a alma, que é impedida de alcançar o portal no momento do pulo final para a eternidade. Caindo no espaço sideral, a alma, que esteve tão perto do descanso eterno, agora se vê presa em um looping temporal, representado pela volta do mesmo arranjo de piano elétrico ouvido nos primeiros segundos do álbum, dessa vez com a derradeira faixa, The Other Stubbs Effect (Pyle).
Significado

Metalinguagem, movimento da cidade grande, dança de vozes, visões e sonhos psicodélicos de barcos que voam pelas estrelas. No fim, certamente a última das preocupações do Hatfield and the North em seu disco de estreia está no conceito de suas letras, que são levadas por um tom de brincadeira proporcionado pela ironia, metalinguística e sátira, o que contrasta com as harmonias e melodias extremamente sérias e rebuscadas. De toda forma, complexo do início ao fim, Hatfield and the North prende o ouvinte atento, que se vê imaginando diversas possibilidades de significados para as músicas aqui contidas. O recomendável, então, é escutar o álbum na íntegra ininterruptamente, deixando a mente viajar, na busca pela emoção a qual Miller, Pyle, Sinclair, Stewart e os demais artistas quiseram passar há mais de 50 anos.
Comentarios