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Memórias de uma vida são retratadas em ‘Atrás Poeira’, composição de Ivan Lins e Vitor Martins, que completam 50 anos de parceria neste ano

Canção foi eternizada pela dupla Sá & Guarabyra, em 1990

Ivan Lins e Vitor Martins
Lins e Martins são dois dos compositores com mais canções regravadas da MPB | Foto: Divulgação

Em 1986, o grande cantor, compositor e musicista Ivan Lins lançou o álbum de estúdio Ivan Lins, que trazia, dentre suas faixas, Atrás Poeira, parceria dele com o letrista Vitor Martins. Tendo dividido crédito em mais de 300 canções, em um companheirismo que já dura 50 anos, a dupla protagonizou sucessos como Abre Alas, o marco inicial, Lembra de Mim, Novo Tempo, Vieste, Vitoriosa e muitos outros. Embora não tenha alcançado tanto êxito na voz de Lins, Atrás Poeira, uma composição progressiva que fala das memórias de um homem no sertão, tornou-se uma das mais conhecidas nas vozes da dupla Sá & Guarabyra, que a registrou em 1990 no disco Vamos Por Aí.

 

Durante gravação para o projeto MINIdocs, em 2016, Lins conta: “Atrás Poeira é uma letra que eu musiquei. Conta a história de uma saga, é um moto-contínuo, é uma coisa que vai entrando na outra e vai entrando na outra, é uma crônica”. O compositor e intérprete Rafael Altério, que divide a apresentação da canção com Lins no vídeo ao MINIdocs, brinca que, para musicar uma letra dessas, “você tem que ser um Ivan Lins, se não, não vai dar certo.” Assim como em tal registro disponibilizado no canal do YouTube do projeto de documentários curtos, Lins e Altério retrabalharam a música no estilo sertanejo em outras oportunidades, oferecendo mais coerência com o conteúdo lírico, em comparação com o pop preferido por Lins em sua gravação de 1986.

 

Com audácia e qualidade, em 1990, Sá & Guarabyra reformulam Atrás Poeira, tanto no estilo musical, quanto em sutilezas da letra, algumas que até alteram o sentido e a interpretação de quem escuta. Embora não a tenham conduzido para o lado da música sertaneja, a dupla opta por uma produção mais moderna e não tão pop, mantendo o teclado à la Lins, mas acrescentando uma introdução que se tornaria característica da música, dando mais ritmo à bateria e outros elementos percussivos, e incluindo, ainda, solo de guitarra e arranjos de sanfona e cordas.

 

Estrutura e mensagem

Homem cavalgando em direção ao por do sol
Letra de “Atrás Poeira” fala da sina de um homem do sertão | Foto: Reprodução/Pinterest

Com quase nenhum espaço para respirar a quem se arrisca a cantá-la, Atrás Poeira é construída a partir de uma sequência ora crescente, ora decadente de acordes e melodias vocais. É como se o canto fosse desenhado em uma função quadrática, a qual inicia no topo e vai diminuindo de tom, até começar a crescer novamente e atingir o topo. Os acordes escolhidos por Lins oferecem a base para tal possibilidade, começando em mi e, após um festival de acordes, retornando ao mi mais uma vez, no fim de cada período. Harmonicamente, o músico espertamente opta pela utilização do contrate entre acordes maiores, que tingem o tom épico da jornada, e menores, que são coerentes com a tristeza vivenciada pelo protagonista da história. Dessa forma, o compositor consegue trazer a confusão de sentimentos vivida pelo homem retratado na música, este que nutri um amor dentro dele, mas esbarra nas diversas desilusões, injustiças e tristezas da árdua vida do sertão. Não apenas essa construção melódica é incomum, mas a letra e suas ligações entre uma memória e outra, também.

 

O ponto de partida da história é o homem subindo em um baio, ou seja, um cavalo de cor castanha, e, rapidamente – como um raio –, pegando o atalho de uma estrada até sumir no horizonte. A letra traz o detalhe de que o homem carrega consigo uma algibeira, isto é, um saco pequeno, no qual ele guarda um retrato de alguém que ama e um baralho. A paisagem cinematográfica também é tecida: na frente do caminho pelo qual o homem cavalga, não há nada, enquanto atrás, a poeira levantada pelo cavalo na estrada de terra, uma porteira e as memórias desse homem que serão apresentadas nos versos seguintes.

 

Dando sequência, a primeira personagem, Rita é recordada pelo homem: “Atrás da Rita, que foi bonita/ Que anda bebendo/ Que anda correndo atrás do tempo/ E dos rapazes”. Em tal verso, há uma divergência entre a letra original apresentada por Lins em 86 e a releitura de Sá & Guarabyra de 90, já que a dupla canta “Atrás da Rita, que anda bonita”, alterando o passado para o presente. Pode-se chegar a duas interpretações: na versão de Lins, o homem não tem mais interesse em Rita, enquanto na de Sá & Guarabyra, ele ainda gosta dela. De toda maneira, nos versos seguintes fica clara a ideia de que Rita acabou trocando o homem simples do sertão pela busca por outros rapazes bem-sucedidos, que fossem “capazes de ir a fundo, de dar o mundo, de dar o brilho”, ou seja, donos de minas que pudessem lhe dar o ouro por meio do garimpo, tendo capacidade de oferecer, financeiramente, um casamento mais estável e a possibilidade da criação de uma família – “De dar o brilho/ Que as mulheres têm quando casam/ E lhes dão filhos”. Trata-se da primeira desilusão do protagonista nessa jornada.

 

Nas frases subsequentes, o homem, que está perdido devido à perda de um grande amor, encontra esperança nos amigos: “Tava perdido, mas é sabido/ Que nessas horas só os amigos/ São quem socorrem”. Entretanto, a letra apresenta a impossibilidade de tal homem buscar refúgio nas amizades: “José, de porre, tá com malfeito/ Antônio morre daquele jeito/ Tão novo ainda”. Trata-se de mais um desapontamento na saga do protagonista.

 

Posteriormente, pode-se interpretar que a letra diz sobre o homem o qual conquistou o interesse de Rita: “Deixou bem-vinda/ Que era linda pro Zé Calixto”. O coração do protagonista se racha ainda mais quando ele se lembra da má pessoa que Zé Calixto se tornou: mal visto por todos ao redor devido a seus atos, ele construiu um império de garimpo por meio do dinheiro advindo de roubo de gado, e acabou perdendo o “cheiro que têm os homens quando trabalham”, ou seja, o suor de um trabalhador honesto.

 

Logo depois, é revelada uma emboscada para o protagonista, mas os atiradores, da tocaia, acabam acertando o parceiro dele, um violeiro “Que andava a esmo/ E era mesmo bom companheiro”. Desses versos, pode-se extrair que Zé Calixto, um homem poderoso, incomodado com o fato de Rita ainda nutrir sentimentos pelo homem sertanejo, mandou matá-lo para acabar de vez com a rivalidade. Imagina-se o cenário após tal acontecimento: vendo o amigo violeiro baleado no chão, o protagonista avista um baio na estrada e se põe a fugir dali, ultrapassando o limite da porteira da fazenda onde trabalhava, e se colocando a cavalgar sem rumo.

 

De maneira surpreendente, após contextualizar toda a trajetória de desilusões por meio das lembranças do protagonista, um homem simples e trabalhador do sertão obrigado a abandonar a vida que levava, a canção retorna ao momento do presente. Depois de tamanha reflexão e quilômetros percorridos, o sertanejo decide jogar fora o retrato e o baralho que carregava na algibeira: “E já que agora tá tudo fora/ Tudo partido e sem sentido/ Não tem sentido ter na algibeira/ O seu retrato e o seu baralho/ É ele, o baio e nada mais”. Desvencilhar-se do retrato de Rita representa a desistência, de fato, da pessoa que ele amava, enquanto o ato de jogar fora o baralho diz respeito à tristeza de não ter mais com quem jogar cartas, considerando que ele perdeu os amigos no decorrer da jornada. Agora, o homem segue com seu baio e nada mais.

 

Uma música tão inteligente na teoria e na prática, e com letra a qual traz uma saga épica e tocante, já que faz o ouvinte sentir na própria pele as emoções vividas pelo protagonista, merece sempre ser relembrada. Confira as versões de Atrás Poeira citadas durante o texto, clicando nos links abaixo.







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Blog editado por Caio Alves, graduando em Jornalismo na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

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