‘Subindo o São Francisco’, o resultado da jornada sonora de Marcelo Fonseca das Minas Gerais à Bahia
- Caio Alves
- 24 de jul. de 2024
- 15 min de leitura
Violinista mistura ritmos nordestinos com mineiridade e influências do jazz e música progressiva
Em outubro de 2019, o violinista mineiro Marcelo Fonseca lançou seu primeiro disco de estúdio, Subindo o São Francisco, reunindo, de maneira sofisticada e original, estilos do nordeste, música mineira e influências do jazz e rock progressivo. Salve exceção da faixa de encerramento, registrada ao vivo em Lagoa Santa, Minas Gerais, o produto de quatro anos foi inteiramente gravado em Salvador, Bahia, no período em que Fonseca residiu por lá, sendo resultado da contribuição de pessoas chegadas ao artista e dos diversos musicistas os quais gravam no álbum, alguns deles figuras renomadas, a exemplo de Xangai, Raymundo Sodré, Gabi Guedes e Marcos Suzano. O título dado ao CD faz alusão à trajetória percorrida por Fonseca junto da companheira, Fernanda Rodrigues, de Minas Gerais até a Bahia, incentivados pela busca por novos horizontes, inspirações e oportunidades.
Envolto de sonoridades que remontam paisagens cinematográficas e vivências do cotidiano, Subindo o São Francisco é constituído por dez faixas instrumentais, sete delas compostas ou apenas por Fonseca ou em parceria com outros músicos e três releituras. Durante a produção do disco, por ser artista independente, o violinista ultrapassou desafios, a exemplo da necessidade de realizar permutas, isto é, gravações para outros musicistas em troca de horas em estúdio, falta de incentivo e/ou verba do Governo para o desenvolvimento do projeto etc. No entanto, tais dificuldades não desanimaram Fonseca, que cuidou minuciosamente da parte de arranjos e produção musical, apoiado pela produção executiva de Antônio Nykiel, tecnicidade de gravação, edições e mixagem de Bráulio Barral e Ramos de Jesus, masterização de Ben Elliot e, no que tange a arte do CD físico, fotografias de Rebeca Carapia e Daniel Ferreira e projeto gráfico de Marcelo Rios/ SeClick.
Em 2024, quase cinco anos após a publicação original pela MCK Discos, Subindo o São Francisco é relançado pela gravadora Kuarup, amparado pelo single Toque de Feira, cuja interpretação é de Fonseca e do violeiro Chico Lobo, este que assina autoria da música instrumental. Na busca pelas imagens, histórias e sentimentos os quais Fonseca quis passar por meio do concebimento de seu álbum de estreia, o Escutei nos Discos mergulha em cada composição, trazendo relatos a respeito dos bastidores, curiosidades, processo de composição, além de possíveis interpretações para as faixas.
Faixa-a-faixa: primeira metade
A jornada sonora pelas beiradas do Rio São Francisco se inicia com Terra, parceria entre o guitarrista Lucas Luis e Fonseca, premiada no 1° Festival Cerrado Instrumental, na categoria voto popular, em novembro de 2022. Amigo de longa data do violinista, Luis conta como a amizade entre os dois se desenvolveu: “Quando eu e o Marcelo nos conhecemos, éramos moleques, devíamos ter uns 12, 13 anos. Estudamos juntos na mesma escola em Lagoa Santa, mas nos conhecemos de verdade em uma festa de um amigo em comum. Foi uma daquelas festas que o pessoal leva instrumentos. Montamos o esquema lá e improvisamos juntos pela primeira vez. Fomos esbarrar na vida novamente depois dos 20 e poucos anos de idade, já mais maduros e decididos a nos profissionalizar na música, o que acredito ter fortalecido bastante nosso vínculo e amizade”.
Terra nasceu enquanto Luis viajava a trabalho para Barra Grande, Bahia, quando parou na casa de Marcelo, em Salvador, caminho de seu destino. Após grande atraso em seu voo, ele chegou na capital baiana e foi alinhar a conversa com o amigo, transpondo o dia e as horas da noite. Luis relata que, em algum momento da madrugada – a hora preferida dos músicos –, ele apresentou seu esboço de uma nova música a Fonseca, que logo pegou o violino e se pôs a acompanhar. “Ele criou as melodias que foram o link para a pré-estrutura a qual eu já tinha. Lapidamos aqui e ali e, cerca de uma hora depois, a música estava inteiramente acabada. O Marcelo estava no processo de gravação do Subindo o São Francisco e acho que essa música condensou e consolidou muito nossa amizade. Acredito que nós dois sentimos isso nesse dia e ficamos bastante felizes com essa primeira parceria. No mesmo dia ele sugeriu de colocar a música para abrir o disco, o que eu concordei de cara”, comenta.
Em um resgate das brincadeiras de solfejo da infância de Fonseca, Terra é introduzida por notas cantadas que sobem e descem como uma pipa no céu. O corte do barbante vem com os batuques da percussão, e a sinfonia segue com os riffs de guitarra de Luis, que trabalha ao lado de elementos percussivos de sonoridade africana, performados por Pururu Mão no Couro, e do baixo repleto de groove, tocado por Gustavo Caribé. O violino, por sua vez, invade a música com seu som rasgado como em um anúncio de um evento grandioso. De fato, ele anuncia o nome de um grande músico, introduz um jeito único de tocar; hora virtuoso, outrora calmo, indo e vindo, Fonseca passeia pela música, acompanhado da impecável instrumentação.
Pode-se dizer que Terra é constituída de quatro momentos: “Anunciação”, “Chegada”, “Dúvida” e “Entrega” – nomes utilizados no presente texto apenas na tentativa de transformar o som em palavras. Após a parte introdutória “Anunciação”, “Chegada” traz uma breve sonoridade alegre com o violino falante de Marcelo; a música segue com um ar de “e se”, justificando “Dúvida” e apresentando a sonoridade de um certo tipo de receio; o último dos momentos é “Entrega”, que representa a superação de qualquer tipo de temor e rendição aos desafios e felicidades que a vida proporciona. Com frases crescentes de violino, esta última seção é como uma escada a qual faz o ouvinte caminhar pelas memórias da infância; trata-se de uma nostalgia, de um jogar futebol descalço no asfalto escaldante.
Ademais, depois dessa organização em quatro partes, Marcelo realiza o que, em uma canção, seria denominado solo. Utilizando diversos canais, Fonseca se multiplica em alguns instantes, o que diferencia esse momento dos outros. Na sequência, a mesma técnica é utilizada por Lucas em seu conjunto de solos de guitarra. Contrastando a rapidez (as notas soltas) com a calmaria (os acordes lentos), Luis remonta músicos do porte de Steve Howe, da banda Yes. A partir do segundo momento, a faixa tem sua estrutura repetida com mudanças sutis e, então, é finalizada de repente, oferecendo um gosto de inacabada e engenhosamente dizendo que o final – o qual representa a vida – pode ser escrito de forma subjetiva.
Subindo o São Francisco segue com Nevoeiro, mais uma parceria de Marcelo com um amigo, desta vez o violonista Cassiano Luiz. “Esta música é o seguinte: eu e o Cassiano a fizemos bem antes de eu ir para a Bahia, quando estávamos começando a pegar várias coisas da música brasileira como chorinho, Cartola, Benito di Paula, Jacob do Bandolim, muita coisa do samba etc. Estávamos estudando um dos compositores, quando nos vimos saindo da composição do cara e começando a criar. Daí nasceu Nevoeiro, de um estudo de harmonia da música ‘brazuca’”, revela Fonseca. Pode-se dizer que Nevoeiro conta a história de alguém que teve de sair da sua terra em busca de uma vida melhor, isto é, com vontade dividida. Tal viagem seria de trem, vide a abertura percussiva de Gabi Guedes.
Com seu violão, Cassiano Luiz inicia o conto da história de tal personagem e, após um breve som de névoa, é seguido por Fonseca, que novamente se multiplica no violino, em pontadas à la Jean-Luc Ponty, violinista francês essencial para o jazz fusion e ídolo dele. O tom é de alegria quando os instrumentos aumentam a velocidade e são acompanhados por sons de crianças brincando, o que pode ser notado como uma breve memória da vida sem preocupações durante a infância na terra natal do protagonista. Logo depois, porém, a música volta a nevoar-se, principalmente devido ao som agudo de violino ao fundo – um grito que vem do coração. Assim, uma sonoridade misteriosa toma conta dessa seção, porém, quando a música se encaminha para o final, com os acordes, notas e batuques comoventes, a viagem termina e o nevoeiro passa com o clarear do dia, oferecendo a moral da inevitabilidade de certas mudanças da vida.
A próxima faixa, Erê é uma composição solo de Fonseca, que, além do violino, toca violão e balafon. O multi-instrumentista a compôs durante uma visita ao cantor e compositor baiano Raymundo Sodré, uma das peças fundamentais para a concretização de Subindo o São Francisco. “O Sodré tem um instrumento africano na casa dele chamado balafon, que é mais ou menos afinado em dó – não é, mas é como se fosse. Eu estava sempre na casa do Sodré e tal, e aí eu criei um groove. Nesse dia tinha várias pessoas na casa dele, então eu fui pegando o celular de cada pessoa e gravei esse groove. ‘Botei’ na caixa [de som]. Daí fiz um violão. Gravei o balafon [junto do] violão – coloquei outro celular para gravar os dois. Fiz um violino. Daí gravei as três coisas em outro celular e ‘botei’ para tocar. Depois fiz um outro groove, que foi o B, e aí já foi, Erê estava pronta”, detalha Fonseca. Tal história pode ser a resposta para o nome dessa música, visto que um dos significados de Erê é “fazer brincadeira”, praticamente o que Marcelo realizou para compor seu arranjo.
Quarta música do disco, Rabecando foi composta pelo violinista quando ele e Rodrigo Sestrem, outro entre os irmãos que a Música lhe deu, foram convidados para tocar no Festival de Música Instrumental da Bahia. Fonseca conta: “Eu estava empolgado com aquilo, já que é um festival grande de música instrumental. Então, fiz uma música para tocar nesse festival, que foi Rabecando”. Com o que ele chama de “coco arrabecado”, o violinista homenageia os mestres da rabeca, sobretudo Nelson da Rabeca e Luiz Paixão. Tal faixa é uma das mais agitadas do álbum, vide as notas fritadas de Marcelo e a orquestra percussiva de Marcos Suzano; alegoricamente, imagina-se uma roda de musicistas alegrando o povo, que dança, come, bebe e faz muita festa.
Música subsequente que encerra a primeira metade do disco, Riacho Seco é uma composição de Raymundo Sodré, destacada pela curiosidade de ter sido a primeira gravada para Subindo o São Francisco. “Nós já tocávamos essa faixa nas aberturas dos shows. Ela é um xaxado, um baião meio... Não, um xaxado mesmo. Daí fiz uns arranjos de violino para a música [do Sodré] e ele adorou. Eu falei: ‘Babá, vamos gravar isso pro meu disco?’; ele falou: ‘Claro! Nunca foi gravada’”, relata Fonseca. Segundo o violinista, devido ao fato de Sodré ter aprovado o arranjo que ele fez inspirado no Quinteto Armorial, importante grupo recifense de música instrumental o qual mesclava a música erudita com as raízes populares, eles decidiram finalmente gravar Riacho Seco, que, além do autor no violão e Fonseca no violino, conta com Léo Marques na percussão.
O arranjo de Riacho Seco remete às viagens pelas terras secas do nordeste, começando com o chacoalhar de guizo de uma cascavel e seguindo com a combinação de riffs do violão e do violino. Em alguns momentos, Fonseca utiliza a técnica Pizzicato, ao tocar violino sem o arco, proporcionando uma sonoridade “seca” à melodia. Os viajantes das terras áridas percorrem uma longa jornada em busca do rio-salvador-de-suas-vidas, sempre com muita alegria e resenha – Sodré e Fonseca parecem conversar com seus respectivos instrumentos. Nos acordes finais, os personagens se deparam com as águas reluzentes de um rio, o que acaba por renovar a esperança e as forças para seguir viagem.
Segunda metade
Passando à segunda metade de Subindo o São Francisco, o cantar de um pássaro introduz Andara, seguido pelos sons psicodélicos das camadas de violino (Fonseca) e pelas notas emblemáticas de baixo (Felipe Guedes). A percussão (Gabi Guedes) logo entra para anunciar a agitação da música, que ganha fortes frases de violino e um fundo calmo de violão (Fonseca) e piano (Zito Moura) – este último instrumento aparece apenas nessa música e oferece um leve tom jazzista. Em um determinado momento, o arranjo é enriquecido pelo solo enérgico de percussão, que é acompanhada pelo groove de violino e baixo. Um grito em forma de nota contínua de violino chama a faixa novamente ao arranjo principal e a música se encerra com o mesmo canto de pássaro do início.
Marcelo conta que escreveu Andara inspirado no grande percussionista baiano Gabi Guedes, que tocou junto de grandes nomes como o saudoso maestro Letieres Leite e o músico jamaicano Jimmy Cliff. “Ela tem um compasso muito diferente, o cinco por oito, que tem muito a ver com a música africana, Moacir Santos, algumas coisas diferentes nesse sentido. O Gabi Guedes é do candomblé e isso tem um poder muito grande dentro de mim – a música africana, a música negra, principalmente a que rola ali em Salvador, que é a capital mais negra fora da África”, afirma Fonseca. A composição foi uma das concorrentes do Prêmio BDMG Instrumental de 2019, ocasião em que Marcelo a apresentou junto de Aloízio Horta (baixo), Felipe Guedes (guitarra), Marcelo Dai (bateria) e Pururu Mão no Couro (percussão).
Seguindo o álbum, a novata e nervosa viola de 10 cordas arranjada por Marcelo abre Tupi Faz Tudo, composição de Leandro Floresta e Rodrigo Sestrem, este o qual grava flauta e é acompanhado pelo violino – junção a qual remonta o grupo A Barca do Sol – e pela percussão de Hermogenes Araújo. Após a influência sertaneja da viola caipira, a música passa pelo frevo e vai ao baião, mostrando uma parcela da riqueza da música nordestina. Fonseca se lembra da primeira vez em que ele e Sestrem tocaram a faixa juntos: na época em que ambos integravam um grupo do bairro Itapuã, em Salvador, na Bahia. Os amigos também fundaram o duo ACordaOSopro e percorreram as estradas brasileiras com o objetivo de espalhar o som nordestino.
Apenas pelo nome já se pode perceber que Xote Abaiãzado Pra Ela Em Valsa, faixa seguinte, é uma das mais diferenciadas do disco de Fonseca. A explicação a tal feito cabe em uma palavra: amor. Fernanda Rodrigues foi a centelha responsável pela fogueira sonora criada por Marcelo. A poeta, socióloga, dançarina e astróloga esmiuça: “Na época em que nos conhecemos, eu disse a ele que não pararia de dançar forró, pois era uma coisa que me fazia muito feliz. Acredito que, por isso, ele começou a música em xote. Então, foi muito doido, porque ele não fez a música e me mostrou; ele fez aos poucos, começando em xote, depois baião e, por fim, em valsa – eu participei de cada um desses processos. Quando ele disse que estava fazendo uma música para mim, foi muito emocionante, pois eu sempre tive esse sonho de ter alguém que fizesse uma música para mim. Tanto que, quando nos conhecemos, pedi isso a ele – nesta coisa bastante romantizada de ‘estou namorando um músico, então quero uma música para mim’. Daí, me lembro que a resposta dele foi alguma coisa no sentido de quebrar esse romantismo do processo de criação artística, já que não é uma coisa simples. Então, a música veio em um momento o qual eu não esperava, pois eu abri mão daquela expectativa. E mais do que a música em si, um dos momentos que mais me emociona é quando ele vai tocá-la no palco e faz referência à minha pessoa, à companheira dele, à pessoa que está com ele nos momentos difíceis do ser-artista”.
Marcelo relata ter criado as partes A e B da música logo quando conheceu Fernanda, enquanto ainda morava em Lagoa Santa. “A Fernanda foi quem acabou de firmar na minha vida essa coisa do forró, do xaxado, do baião. Ela sempre gostou muito e eu peguei a influência dela de ouvir, adorar e ser apaixonado com isso. Então, fiz o A e o B quando nos conhecemos, em 2014. Depois, quando fui gravá-la na Bahia, fiz o C da música, pensando bastante em Hermeto Pascoal, em alguma coisa do ciclo das quintas”, conta. O ciclo das quintas mencionado pelo musicista é uma sequência de notas distanciadas por intervalos de quinta justa, por exemplo: dó – sol – ré – lá – mi – si.
Falando da sonoridade em si, os músicos chamam a faixa e o festival de dança é iniciado. O “A” do instrumental é construído pelas frases de violino (Fonseca) e acordeom (Cicinho De Assís), junto do gingado do mesmo aerofone e da zabumba (José Ferretti). A flauta (Rodrigo Sestrem) se junta à sinfonia e o xote é “abaiãzado”. Logo mais, os instrumentistas remontam Hermeto Pascoal na parte supracitada por Marcelo, o que serve de ponte para o “C” da faixa. Nesta última, a flauta anuncia o belo solo de acordeom e a faixa vira uma valsa, mostrando o lado romântico de Fonseca, que mais tarde executa seu solo de violino. No decorrer da faixa, a estrutura da composição é relembrada para, assim, os músicos encerrarem com maestria essa festa de notas e ritmos.
Continuando tal receita eclética, o álbum traz a união Brasil e Argentina com a próxima faixa, Tambo Sanga, parceria entre Ricardo Vieira e Marcelo a qual faturou a 2ª posição do Prêmio Nabor Pires Camargo, em São Paulo. O instrumental nasceu a partir de um samba “meio chorinho” o qual Fonseca havia criado. Desde o início ele desejava incluir um violão de sete cordas ao arranjo de violino e deixar por isso apenas. Foi aí que ele pensou em Ricardo Vieira, amigo o qual conheceu em apresentação com Xangai, em uma edição do Caixa Cultural. “Busquei o Ricardo um dia no aeroporto – ele estava de passagem em Salvador. Eu tinha falado: ‘Cara, tem um samba aqui que a gente tem que gravar. Bora gravar?’ E ele falou: ‘Estou em Salvador tal dia. Bora!’ Então, peguei ele no aeroporto, levei lá para casa, tomamos um café e fomos passar a primeira parte da música (o samba). Depois fizemos uma frase de saída que ia para algum lugar, e esse ‘algum lugar’ era uma espécie de tango. Por isso o nome Tambo Sanga – fizemos uma brincadeira de palavras”, conta Fonseca.
O momento sambista da faixa diz das alegrias e festanças da vida – a combinação dos riffs veementes de Marcelo com o violão ágil de Ricardo. Por sua vez o instante-tango conta sobre as tristezas e dificuldades – os músicos diminuem o ritmo e compõem um arranjo mais sensível, com o detalhe de Fonseca utilizando novamente a técnica Pizzicato e Vieira fazendo o violão soar como um contrabaixo em certos segundos. Após ultrapassar este último sentimento, a música retorna ao ligeiro ritmo do samba e se encerra com a convergência de frases de ambos os instrumentos musicais.
A derradeira parada dessa jornada sonora vem com Chapada de São Marcos, música composta no final da década de 1990 pelo pai de Marcelo, Murilo Fonseca, em parceria com Marcos Quinan, compositor, escritor e artista plástico. “Meu pai é uma das minhas maiores influências, então eu não poderia deixar de ter uma coisa dele [no disco]. Eu a ouço desde sempre em minha casa”, conta o filho. Segundo Murilo, toda vez que ele tocava a música para Marcelo, este se encantava e a elogiava: “Que massa, pai”. Apesar de ter registrado viola e rabeca em estúdio, Marcelo aproveitou uma gravação ao vivo de uma de suas idas de Salvador para a casa de seus pais, localizada em Lagoa Santa. O músico desejava incluir uma faixa presencial em seu disco e, dessa maneira, na mesma tacada sanou tal objetivo e reverenciou o pai.
Rafael Dultra captou e mixou os áudios de Marcelo e Murilo, que tocaram, respectivamente, violino e viola no quintal da casa da família Fonseca. As imagens, a produção e a montagem e finalização do vídeo ficaram por conta de Ana Luiza Siqueira, Daniel Ferreira e Letícia Ferreira, sendo uma realização da produtora audiovisual independente Café Pingado Filmes, em parceria com o Estúdio Motor. Sobre os bastidores da gravação, Murilo relata que “foi um dia gozado, porque estava aquele tempo chove-não-chove. O sol se abriu durante as duas horas de gravações e, logo após, voltou a se esconder. Quando acabamos, rolou um almoção com toda a equipe”. A fim de complementar a gravação de 2017 com intervenções de melodias, Marcelo convidou o cantor, compositor e violeiro Xangai para solfejar na faixa. As seções deste foram captadas por Thomaz Oliveira, no Estúdio Laborato.
“A Chapada de São Marcos está situada no estado de Goiás, um local onde o Quinan passou boa parte da infância. É uma região cheia de pinturas rupestres, que nem aqui [em Lagoa Santa]. Então, essa música tem muito a ver com os trabalhos artísticos do Quinan. Eu lembro que ele fazia umas multidões de bonequinhos de pedra do tamanho de uma das dobras do dedo mindinho. Eu ficava louco com aquilo”, revela Murilo. Indagado a respeito da história da composição instrumental, o coautor diz: “Conheci o Quinan no final da década de 1980, através do amigo Nilson Chaves, em algum dos festivais de Belém, no Pará. Depois que viramos amigos, eu passava sempre na casa dele para tomar o ‘caju atômico’ – você coloca um caju dentro de uma garrafa, espera ele crescer e adiciona cachaça. Me lembro, também, de passar o tempo livre em um lugar chamado Praça do Açaí; eu observava as embarcações que chegavam o dia todo no porto. Daí, por volta de 1997, 1998, o Quinan me mostrou uma ideia de música na viola. Era algo simples, porém genial. Fiquei com aquilo na cabeça. Quando voltei para Lagoa Santa, desenvolvi esse esboço e adicionei a melodia do solfejo”.
Chapada de São Marcos emana um sentimento de felicidade ao cumprir um objetivo, de brincadeiras de crianças no leito raso de um rio, de gratidão ao colher frutos depois da seca amedrontadora, de uma caminhada em direção ao pôr do sol após um dia cansativo no trabalho. Trata-se, portanto, do fechamento ideal a um disco tão batalhado quanto Subindo o São Francisco. “O primeiro disco independente no Brasil é uma luta. Você tem de estar muito a fim de fazer, pois não tem incentivo municipal, estadual ou federal. É inimaginável o tanto de coisa que você tem de fazer para dar certo”, desabafa Fonseca.
No topo do São Francisco
A estreia de Marcelo Fonseca não poderia ser menos emblemática, visto o nível do time envolvido, dos arranjos, das composições, da gama de influências, estilos e ritmos, das histórias por trás das faixas e do significado subjetivo de cada nota contida em Subindo o São Francisco. Sobre o momento em que conferiu seu primeiro disco completo pela primeira vez, o violinista conta: “Fiquei bastante emocionado; ‘venci a batalha’. A qualidade do disco sempre me surpreende quando o ouço, pois dá para ver que foi feito com muito carinho. Modéstia à parte, ele é um disco muito rico; instrumental ‘brazuca’, de fato”. Fonseca também costuma dizer que considera Subindo o São Francisco um álbum para o ouvinte escutar no cotidiano, seja fazendo faxina, lavando louça, viajando etc. Com um trabalho tão coeso, diverso e contemporâneo, o músico acaba por refutar o discurso saudosista de que “música boa ficou no passado”, vide tanta qualidade e originalidade.
Você pode conferir toda a trajetória do artista, que conversa com a Música desde a barriga da mãe, na reportagem postada recentemente no Escutei nos Discos a respeito dele. Para embarcar nessa jornada sonora do violinista Marcelo Fonseca pelas riquezas do sudeste e nordeste do Brasil, escute o álbum Subindo o São Francisco, clicando no link abaixo.
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